REFLEXÕES SOBRE A LEI FEDERAL N O 11.645
Elvécio Eustáquio da Silva
"O
Brasil é um país mestiço. O futuro do mundo é a mestiçagem, todo mundo sabe
disso, não é? É preciso, então, assumir essa mestiçagem em seu sentido mais
amplo e complexo".
Laura de Mello e Souza
Entrevista —
História como desenho
Revista de
História da Biblioteca Nacional Rio de Janeiro — RJ — Ano 04, n O 46,
julho de 2009 pags. 50 a 55.
A Lei Federal n o 1
1 .645, de 10 de março de 2008, altera a lei n o 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, modificada pela lei n o 10.639, de 09 de janeiro
de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
"Historia e Cultura Afro-Brasileira e Indígena' nos estabelecimentos de
ensino fundamental e ensino médio,
públicos e privados.
Esta lei tem a função estratégica
para a formação e auto-estima do povo brasileiro, afro-descendentes em
sua maioria, recompensando erros históricos) com o reconhecimento dos mesmos e
dos seus antepassados, no processo civilizatório da vida brasileira, na
condição de sujeitos na construção da sociedade.
O êxito na aplicação desta lei não só dependerá da
capacitação do magistério para absorvê-la, mas muito mais do que isso,
dependerá principalmente da humildade de cada um de se curvar diante de uma
nova realidade e contextos que ela propõe desencadear. Ela vem revestida de uma
certa superioridade que está acima de muita coisa que achamos que sabemos, das
nossas religiões, dos nossos preconceitos. Ela desconstrói teses e reconstrói
valores. Estamos sendo conduzidos ao encontro da essência do saber construído e
reconstruído, que vai nos guiar a uma pedagogia e a uma didática libertadora,
libertando a nós mesmos, para libertar uns aos outros.
Este é o momento de cada um assumir o seu papel na
regência da cadeia de ações que se desencadeará na reconstrução sociocultural
do nosso país. Levará o professor a um recomeço, ele estará lidando com o novo,
o surpreendente dentro do processo histórico educacional, Ele buscará erudição
nas raízes da Comunidade para a formação de um suporte didático e pedagógico,
para levar às salas de aula a matéria proposta.
Trata-se de um grande desafio, mas não um bicho papão,
e ao mesmo tempo um privilégio para nós que nos encontramos envolvidos neste
projeto de capacitação. Ele oportunizará vivenciarmos a simbiose de saberes com
a comunidade.
Na produção acadêmica e empírica, que se encontra
disponível em vários suportes tradicionais e de alta tecnologia, buscaremos
informações complementares para a possível contextualização do fato local,
regional, à luz da ciência e da historiografia pertinentes.
Só terá sentido a aplicação desta matéria na sala
de aula se ela promover conteúdos identitários, subsidiados pela memória local,
e assim revelar com grande expectativa comunitária, histórias de pertencimento,
e quem sabe, de encantamento.
Levar junto às comunidades açÕes interativas para a
identificação de lastro de interesses, quer sejam eles materiais, imateriais —
profanos e sagrados.
Especialistas em educação e comunidade descobrindo e
redescobrindo no seu território marcas da cultura africana, estratificadas em
bens materiais e imateriais — saberes, fazeres e devoções.
A existência de quilombos, já reconhecidos ou não,
reverterá em privilégio para este projeto, tanto para a localidade, tanto para
os professores, que teìão disponível um acervo de evidências desta
estratificação latente no coletivó de vivência secular, permanência e
pertencimento.
Nem todas as nossas comunidades têm o privilégio de
possuir um quilombo, ao vivo e a cores. As vezes os teve no passado, onde a
memória oral dessas agremiações permanecem, mas às vezes só permaneceram a
nomenclatura "quilombo" no espaço geográfico onde eles existiram.
Locais de importância relevante, pelo potencial de memória não revelada que
neles se encerraram, propício a früiçäo cultural e espiritual, por excelência,
um local para a reflexão e meditação. Mas é possível reconstituir o dia-a-dia
dessas comunidades quilombolas em seu tempo através de projetos arqueológicos.
Na Capitania de Minas Gerais, os africanos e
conseqüentemente os afrodescendentes se espelhavam no devocionismo da
hagiografia Cristã, assumindo devoções que eram também comuns na África
Portuguesa, entre outras, Santa Efigênia, São Benedito e principalmente Nossa
Senhora do Rosário. Devoções que, desde os primórdios da Capitania, foram
estabelecidas publicamente através de irmandades, que edificaram nesta terra
inúmeras igrejas e capelas, como também cemitérios. Algumas atravessaram
séculos e permanecem, muitas desapareceram como também ressurgiram, resultando
um potencial de memória de grande significado, marcante no processo
civilizatório em Minas Gerais. Memória disponibilizada em nossa região para ser
absorvida e apropriada por nós.
Reconhecemos que, além das duas potenciais fontes que
foram expostas quilombos e irmandades, muitas
outras, certamente, ainda serão reveladas, e poderão vir a somar, para que
sejam arquitetadas propostas sólidas em função do cumprimento efetivo das
exigências da lei em pauta.
Partiremos na prática para o reconhecimento,
descobertas, valorização e revalorização. Revitalização de valores
socioculturais através de sua apropriação e inserção em conteúdos
disciplinares, e devolvê-los para a comunidade, numa interação de auto-estima e
pertencimento, em busca de caminhos possíveis para o desenvolvimento humano e
econômico.
Nova Era, 14 de julho de 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário