Entre as montanhas, o
recém emancipado distrito de São José da Lagoa (1938) passava por grandes
transformações: fabriquetas e estabelecimentos diversos se beneficiavam
excepcionalmente de dois ramais ferroviários.
Nesse cenário de
perspectiva progressista, precisamente no dia 15 de abril de 1939, nascia a 1ª
filha de Sebastião Bento Domingues, em segundas núpcias com Francisca Dias de
Almeida. No dia 5 de novembro do mesmo ano, na pia batismal da Matriz de São
José da Lagoa, a menina recebeu o nome de Maria Efigênia Dias Domingues. Seus
pais, Sebastião Padeiro e Dona Chiquinha, eram um casal que se destacava na
sociedade local e estava bem estabelecido na “praça”, dominando o mercado de
panificação com modernos maquinários, investimentos que anunciavam
prosperidade.
Nos primeiros decênios
do século XX, nações se digladiavam, nosso planeta vinha se transformando num
gigantesco campo de guerra. Eventos nefastos que expandiam com reflexos em
todos os continentes. E o que não se podia imaginar, que tais acontecimentos
afetariam a vida de pequenas cidades do interior do Brasil, acabou acontecendo,
trazendo angústia, pressão psicológica, medo, injustiça; abalando investimentos
com ações monopolizadoras e seletivas na distribuição de certas mercadorias e
insumos, como a farinha de trigo, o sal, o açúcar, a querosene, tudo em nome da
segurança nacional e da economia de guerra.
Nesse contexto, o
senhor Sebastião Padeiro não era mais o mesmo. Os negócios não iam bem, não
tinha mais a farinha de trigo suficiente para os pães e outros produtos de seu
empreendimento. E assim decidiu vender todo o maquinário da padaria. Abriu um
café que, por suas características, marcou época em nossa cidade. Na modéstia
foi levando a vida com serenidade e harmonia junto à prole do primeiro e do
segundo matrimônio. Nesse ambiente, Maria Efigênia Dias Domingues viveu sua
juventude.
Diante de uma folha em
branco, tenho-me perdido em divagações e reflexões sobre temporalidades e pergunto-me,
afinal, qual o porquê, após o falecimento de Maria Efigênia Dias Domingues, a
nossa popular Efigeninha, ocorrido no dia primeiro de janeiro de 2014, de ela
ter se tornado pessoa tão lembrada, discutida e homenageada em nossa comunidade
e na região?
Ela partiu, mas, de fato,
o que ela nos deixou, qual o seu legado?
Sobre ela muitas
perguntas e palavras já foram proclamadas e muitas folhas de papel já foram
escritas.
Mas, assumindo posição
no contexto deste discurso e na trama dos meus dizeres, busco uma síntese.
Sobre ela meu testemunho.
Projeto-me na
transversalidade do tempo e, neste avivar, situo-me a partir da década de 60 do
século XX, período dos meus primeiros contatos com Efigeninha, início de uma duradoura
amizade. Contrapondo a sua rígida formação religiosa um aflorar intelectual que
já se despontava, comedido, mas dando vista a uma possível abertura, o que de fato
se consolidou ao longo de sua vida, buscando sempre interagir com a diversidade,
tornando-se um ícone em nossa comunidade. Período em que ela já era ouvinte e
participante das utopias que já se cristalizavam em meu discurso, viveu em
sintonia com o contemporâneo, em meio a uma sociedade conservadora.
Em nossas causas
comunitárias, Efigeninha sempre se fazia presente, fisicamente ou tomando
partido, esclarecendo, justificando a importância das mesmas. Lutas de
resistência cultural, entre outras, a favor dos nossos bens culturais,
materiais e imateriais, a necessidade do nosso desenvolvimento cultural, a
criação do museu, a restauração e conservação da Matriz de São José da Lagoa;
pelo resgate da festa do nosso padroeiro São José da Lagoa, das celebrações do Reinado,
quando se ouviam seus inesquecíveis “vivas” a São José e a Nossa Senhora do Rosário.
Rotineiramente, com
grande disposição, Efigeninha vivia em trânsito, interagindo regionalmente,
indo e vindo, muitas vezes para outros estados para levar e buscar
conhecimento. Incrivelmente, sempre estava lá, em algum lugar, de repente ela
surgia aqui para cumprir os seus compromissos, às vezes com um certo atraso, mas
com muita alegria. Parecia que ela tinha a capacidade de estar em dois lugares
ao mesmo tempo.
Na década de 80 do
século XX, estávamos integrados às ações em favor da nossa bicentenária
Irmandade do Rosário. Lado a lado com a Rainha Conga D. Maria Francisca dos
Santos (já falecida) quando se deu a nossa introdução ao universo devocional,
místico e mítico da irmandade, às vezes hermético, contextos que vem
desaparecendo pela banalização das nossas tradições. Esta foi uma das causas
que Efigeninha abraçou por toda a sua vida. Em 1990, com muito garbo e
felicidade, ela e o então jovem entusiasta Eugênio Pereira Costa foram incorporados
às celebrações do Reinado de Nossa Senhora do Rosário como Reis Festeiros.
A trajetória comunitária
de Maria Efigênia Dias Domingues foi coroada pela intensidade participativa
avivada pelo dom de escutar o outro e compartilhar. Nas comunidades periféricas
e rurais, ela também esteve presente com a sua palavra amiga, incentivadora,
evangelizando, respeitando contextos identitários, congregando-se em seus
momentos de religiosidade tradicional, ao levantar de mastros com suas
bandeiras devocionais, nos fascínios de fogos de artifício, ao calor de
fogueiras, ao som das sanfonas e das batidas dos tambores.
Lembro-me de quando a
encíclica ‘’Gaudium et Spes’’ ( Parte 2, Cap. 2 ), do Concílio Vaticano 2°,
chamou a nossa atenção, pois algumas de suas recomendações vinham ao encontro
de nossas posições, atentava para o que ocorre ainda hoje. ‘’ Fazer para que os
intercâmbios culturais mais frequentes, que deveriam levar os diferentes grupos
a um diálogo verdadeiro e frutuoso, não perturbem a vida das comunidades, não
destruam sabedoria dos antepassados nem coloquem em perigo a índole própria de
cada povo’’. Infelizmente esta doutrina nem sempre é observada.
A minha convivência com
Efigeninha foi marcada por oportunos diálogos, exercícios de reflexão e
discernimento. Questões sobre política, religiões, religiosidade popular e
sobre o sagrado se tornaram um capítulo à parte em nossas conversas. Foi uma
constante troca liberadora de conhecimento, um levando ao outro recortes de
jornais, revistas, repassando informações e notícias advindas das mídias, de
cursos, congressos, etc.
Através de estudos e
dedicação, consequentemente Efigeninha foi se tornando senhora do universo no
qual se encontrava inserida, daí a maturidade, uma visão antropológica da
cultura que se deu em construção contínua, sem abalar as suas convicções
religiosas, suporte para o intercâmbio intercultural, daí a ampla visão
liberadora e a diplomacia diante de outras denominações religiosas e crenças.
Saliento sua grandeza em reconhecer religiões de matrizes africanas.
Neste breve testemunho
referente a Maria Efigênia Dias Domingues, esclareço ainda que ela não se
intimidava frente a provocações originadas de pessoas desinformadas, defendia veementemente
as suas convicções, ao contrário do que muitas pessoas pensam, ela não oferecia
a outra face para receber tapas, chegava aos limites do conflito, se fazia
respeitar. Mas muitas vezes diante da pequeneza humana, ela se elevava, se
deixava ser sucumbida pela sublimação, a misericórdia e ao perdão, simplesmente
se desvencilhava com altivez.
Mesmo que os impasses
da vida a levassem a lágrimas, que ela guardava para seus momentos de solidão, o
que é natural na vida de qualquer ser humano, a generosidade não lhe faltava.
Quando necessário
Efigeninha administrava divergências, ela sublimou fatos na trajetória da
própria família, historia pessoal, e assim alçou à história coletiva, tornou-se
protagonista de memórias.
Algumas pessoas já me
perguntaram, repito, qual o legado que ela nos deixou?
Para quem se dispõe a
refletir, sentir e se emocionar certamente encontrará esta resposta, pois como
diz o ditado popular “para quem sabe ler um pingo é letra’’. Portanto, basta reconhecê-la
como sempre ela reconhecia o outro, em constante acolhida, homens, mulheres, crianças,
jovens, idosos, negros, brancos, pobres e ricos, de qualquer raça, classe
social e gênero.
E nesse exercício de
memória, lembrar de seus conhecimentos de mestra, de sua alegria contagiante,
da sua altivez, humildade, generosidade e dos seus gestos de humanismo. E assim
cada um de nós recontará um capítulo da trajetória de Maria Efigênia Dias
Domingues na vida da nossa comunidade.
Às vezes, de madrugada,
abro a janela do meu quarto, fixo olhares e sentidos em direção à praça da
Matriz e, na plenitude do silêncio, ouço ecoar “vivas, vivas” a São José, como
se fosse ontem...
Elvécio Eustáquio da Silva
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