domingo, 3 de maio de 2015

Efigeninha, relato de uma amizade

Entre as montanhas, o recém emancipado distrito de São José da Lagoa (1938) passava por grandes transformações: fabriquetas e estabelecimentos diversos se beneficiavam excepcionalmente de dois ramais ferroviários.
Nesse cenário de perspectiva progressista, precisamente no dia 15 de abril de 1939, nascia a 1ª filha de Sebastião Bento Domingues, em segundas núpcias com Francisca Dias de Almeida. No dia 5 de novembro do mesmo ano, na pia batismal da Matriz de São José da Lagoa, a menina recebeu o nome de Maria Efigênia Dias Domingues. Seus pais, Sebastião Padeiro e Dona Chiquinha, eram um casal que se destacava na sociedade local e estava bem estabelecido na “praça”, dominando o mercado de panificação com modernos maquinários, investimentos que anunciavam prosperidade.
Nos primeiros decênios do século XX, nações se digladiavam, nosso planeta vinha se transformando num gigantesco campo de guerra. Eventos nefastos que expandiam com reflexos em todos os continentes. E o que não se podia imaginar, que tais acontecimentos afetariam a vida de pequenas cidades do interior do Brasil, acabou acontecendo, trazendo angústia, pressão psicológica, medo, injustiça; abalando investimentos com ações monopolizadoras e seletivas na distribuição de certas mercadorias e insumos, como a farinha de trigo, o sal, o açúcar, a querosene, tudo em nome da segurança nacional e da economia de guerra.
Nesse contexto, o senhor Sebastião Padeiro não era mais o mesmo. Os negócios não iam bem, não tinha mais a farinha de trigo suficiente para os pães e outros produtos de seu empreendimento. E assim decidiu vender todo o maquinário da padaria. Abriu um café que, por suas características, marcou época em nossa cidade. Na modéstia foi levando a vida com serenidade e harmonia junto à prole do primeiro e do segundo matrimônio. Nesse ambiente, Maria Efigênia Dias Domingues viveu sua juventude.


Diante de uma folha em branco, tenho-me perdido em divagações e reflexões sobre temporalidades e pergunto-me, afinal, qual o porquê, após o falecimento de Maria Efigênia Dias Domingues, a nossa popular Efigeninha, ocorrido no dia primeiro de janeiro de 2014, de ela ter se tornado pessoa tão lembrada, discutida e homenageada em nossa comunidade e na região?
Ela partiu, mas, de fato, o que ela nos deixou, qual o seu legado?
Sobre ela muitas perguntas e palavras já foram proclamadas e muitas folhas de papel já foram escritas.
Mas, assumindo posição no contexto deste discurso e na trama dos meus dizeres, busco uma síntese. Sobre ela meu testemunho.
Projeto-me na transversalidade do tempo e, neste avivar, situo-me a partir da década de 60 do século XX, período dos meus primeiros contatos com Efigeninha, início de uma duradoura amizade. Contrapondo a sua rígida formação religiosa um aflorar intelectual que já se despontava, comedido, mas dando vista a uma possível abertura, o que de fato se consolidou ao longo de sua vida, buscando sempre interagir com a diversidade, tornando-se um ícone em nossa comunidade. Período em que ela já era ouvinte e participante das utopias que já se cristalizavam em meu discurso, viveu em sintonia com o contemporâneo, em meio a uma sociedade conservadora.
Em nossas causas comunitárias, Efigeninha sempre se fazia presente, fisicamente ou tomando partido, esclarecendo, justificando a importância das mesmas. Lutas de resistência cultural, entre outras, a favor dos nossos bens culturais, materiais e imateriais, a necessidade do nosso desenvolvimento cultural, a criação do museu, a restauração e conservação da Matriz de São José da Lagoa; pelo resgate da festa do nosso padroeiro São José da Lagoa, das celebrações do Reinado, quando se ouviam seus inesquecíveis “vivas” a São José e a Nossa Senhora do Rosário.
Rotineiramente, com grande disposição, Efigeninha vivia em trânsito, interagindo regionalmente, indo e vindo, muitas vezes para outros estados para levar e buscar conhecimento. Incrivelmente, sempre estava lá, em algum lugar, de repente ela surgia aqui para cumprir os seus compromissos, às vezes com um certo atraso, mas com muita alegria. Parecia que ela tinha a capacidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Na década de 80 do século XX, estávamos integrados às ações em favor da nossa bicentenária Irmandade do Rosário. Lado a lado com a Rainha Conga D. Maria Francisca dos Santos (já falecida) quando se deu a nossa introdução ao universo devocional, místico e mítico da irmandade, às vezes hermético, contextos que vem desaparecendo pela banalização das nossas tradições. Esta foi uma das causas que Efigeninha abraçou por toda a sua vida. Em 1990, com muito garbo e felicidade, ela e o então jovem entusiasta Eugênio Pereira Costa foram incorporados às celebrações do Reinado de Nossa Senhora do Rosário como Reis Festeiros.
A trajetória comunitária de Maria Efigênia Dias Domingues foi coroada pela intensidade participativa avivada pelo dom de escutar o outro e compartilhar. Nas comunidades periféricas e rurais, ela também esteve presente com a sua palavra amiga, incentivadora, evangelizando, respeitando contextos identitários, congregando-se em seus momentos de religiosidade tradicional, ao levantar de mastros com suas bandeiras devocionais, nos fascínios de fogos de artifício, ao calor de fogueiras, ao som das sanfonas e das batidas dos tambores.
Lembro-me de quando a encíclica ‘’Gaudium et Spes’’ ( Parte 2, Cap. 2 ), do Concílio Vaticano 2°, chamou a nossa atenção, pois algumas de suas recomendações vinham ao encontro de nossas posições, atentava para o que ocorre ainda hoje. ‘’ Fazer para que os intercâmbios culturais mais frequentes, que deveriam levar os diferentes grupos a um diálogo verdadeiro e frutuoso, não perturbem a vida das comunidades, não destruam sabedoria dos antepassados nem coloquem em perigo a índole própria de cada povo’’. Infelizmente esta doutrina nem sempre é observada.
A minha convivência com Efigeninha foi marcada por oportunos diálogos, exercícios de reflexão e discernimento. Questões sobre política, religiões, religiosidade popular e sobre o sagrado se tornaram um capítulo à parte em nossas conversas. Foi uma constante troca liberadora de conhecimento, um levando ao outro recortes de jornais, revistas, repassando informações e notícias advindas das mídias, de cursos, congressos, etc.
Através de estudos e dedicação, consequentemente Efigeninha foi se tornando senhora do universo no qual se encontrava inserida, daí a maturidade, uma visão antropológica da cultura que se deu em construção contínua, sem abalar as suas convicções religiosas, suporte para o intercâmbio intercultural, daí a ampla visão liberadora e a diplomacia diante de outras denominações religiosas e crenças. Saliento sua grandeza em reconhecer religiões de matrizes africanas.
Neste breve testemunho referente a Maria Efigênia Dias Domingues, esclareço ainda que ela não se intimidava frente a provocações originadas de pessoas desinformadas, defendia veementemente as suas convicções, ao contrário do que muitas pessoas pensam, ela não oferecia a outra face para receber tapas, chegava aos limites do conflito, se fazia respeitar. Mas muitas vezes diante da pequeneza humana, ela se elevava, se deixava ser sucumbida pela sublimação, a misericórdia e ao perdão, simplesmente se desvencilhava com altivez.

Mesmo que os impasses da vida a levassem a lágrimas, que ela guardava para seus momentos de solidão, o que é natural na vida de qualquer ser humano, a generosidade não lhe faltava.
Quando necessário Efigeninha administrava divergências, ela sublimou fatos na trajetória da própria família, historia pessoal, e assim alçou à história coletiva, tornou-se protagonista de memórias.
Algumas pessoas já me perguntaram, repito, qual o legado que ela nos deixou?
Para quem se dispõe a refletir, sentir e se emocionar certamente encontrará esta resposta, pois como diz o ditado popular “para quem sabe ler um pingo é letra’’. Portanto, basta reconhecê-la como sempre ela reconhecia o outro, em constante acolhida, homens, mulheres, crianças, jovens, idosos, negros, brancos, pobres e ricos, de qualquer raça, classe social e gênero.
E nesse exercício de memória, lembrar de seus conhecimentos de mestra, de sua alegria contagiante, da sua altivez, humildade, generosidade e dos seus gestos de humanismo. E assim cada um de nós recontará um capítulo da trajetória de Maria Efigênia Dias Domingues na vida da nossa comunidade.

Às vezes, de madrugada, abro a janela do meu quarto, fixo olhares e sentidos em direção à praça da Matriz e, na plenitude do silêncio, ouço ecoar “vivas, vivas” a São José, como se fosse ontem...

Elvécio Eustáquio da Silva 

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